STF decide pela inconstitucionalidade da pena atribuída ao delito de importar medicamentos sem registro no órgão de vigilância sanitária e atribui efeitos repristinatórios

Por: Leandro Góis

Aprendi na Universidade e na vida que “não se abatem pardais disparando canhões”, tal qual cunhou há muito o Jurista Alemão Jellinek. Todavia, a prática forense no mister criminal nos ensina que não raro “disparam mísseis para abaterem diminutos beija-flores”.

O cerne da questão é que nós advogados, do labor criminal, nunca desanimamos e levantamos a questão mesmo quando parecemos ignorantes por ir de encontro “a tal posição” majoritária dos tribunais superiores. É o tempero da advocacia criminal: a insistência.

E uma dessas insistências foi o julgamento de um recurso extraordinário (RE979962), julgado ontem (24/03/2021), e, com repercussão geral para fixar a seguinte tese:

“É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do art. 273 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 9.677/98 (reclusão, de 10 a 15 anos, e multa), à hipótese prevista no seu § 1º-B, I, que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o preceito secundário do art. 273, na redação originária (reclusão, de 1 a 3 anos, e multa)”

Da presente tese poderemos garimpar alguns ensinamentos que disporemos em linhas futuras.

I – DO DELITO DE IMPORTAR MEDICAMENTO SEM REGISTRO NO ÓRGÃO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA

O art. 273 do código penal, dentre várias cominações legais, comina pena para quem importar medicamentos sem registro no órgão de vigilância sanitária (art. 273, §1º-B, I). Vejamos:

 

Art. 273 – Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

  • 1º – Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
  • 1º-A – Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
  • 1º-B – Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

 I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente(Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

Ocorre que o legislador, na ânsia de condenar, atribuiu pena igual a todas as condutas dolosas do artigo 273, pena, por sinal, absurdamente elevada, tendo como paradigma o nosso sistema jurídico: “ reclusão de 10 a 15 anos e multa”.

Nesse exame perfunctório, vemos que no momento do processo legislativo não foi observado o princípio da proporcionalidade e vedação de penas cruéis, uma vez que a referida pena é superior, por exemplo, a pena de estupro de vulnerável, extorsão mediante sequestro e tráfico de drogas.

Não que minimizemos o ato de comercializar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais sem registro. Não é isso.

O que sempre levantamos é que a pena atribuída a ele é absurdamente desproporcional e irrazoável, quando vamos fazer uma ponderação com penas cominadas em outros delitos de bens jurídicos tutelados mais caros.

Analisemos o caso…

 

II – DO CASO E DO JULGAMENTO DO STF

Ontem, dia 24/03/2021, o STF concluiu julgamento do RE979962 no sentido de fixar tese com repercussão geral para declarar inconstitucional a pena relativa ao § 1º-B, I do art. 273 do código penal.

Não cansamos de reproduzi-la:

“É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do art. 273 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 9.677/98 (reclusão, de 10 a 15 anos, e multa), à hipótese prevista no seu § 1º-B, I, que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o preceito secundário do art. 273, na redação originária (reclusão, de 1 a 3 anos, e multa)”

O Ministro Barroso, relator do recurso, já em 18/03 votara pela inconstitucionalidade da pena de 10 a 15 anos para a importação de medicamentos sem registro, concluindo pela aplicação da penalidade do crime de contrabando (art. 334-A do código penal), com pena de dois a cinco anos de reclusão.

Argumentou Barroso que a pena violara os princípios da proibição de penas cruéis, da individualização da penalidade e da proporcionalidade.

Apesar do argumento do enquadramento na pena de contrabando, o relator adequou o seu voto na divergência aberta pelo Ministro Alexandre de Moraes que também votou pela inconstitucionalidade, no entanto, com efeitos repristinatórios a aplicação da pena original para o delito do art. 273 do código penal (reclusão de 01 a 03 anos).

Assim, seguindo o voto ajustado de Barroso pela inconstitucionalidade da pena para importação de medicamentos sem registro, votaram os ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Ficaram vencidos os ministros Luiz Edson Fachin, Marco Aurélio e Luiz Fux, que consideraram a penalidade constitucional.

Na tese com repercussão geral, Fux aderiu à maioria e ficaram vencidos os ministros Fachin, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Lewandowski entendeu que a pena de dez a 15 deveria poder ser aplicada a casos com grande potencial ofensivo.

III – DA PENA APLICADA E DOS EFEITOS REPRISTINATÓRIOS

Que a pena de 10 (dez) anos a 15 (quinze) anos de reclusão é deveras elevada não houve maiores discussões, quer no TRF que julgou a apelação, quer no STF no bojo do RE -Recurso extraordinário.

No entanto, houve um dissenso quanto a qual pena seria/será aplicada ao autor dos fatos narrados na exordial acusatória, e, confirmados.

Pois bem!

O TRF 4 declarou a inconstitucionalidade da sanção do artigo 273 do Código Penal e aplicou a pena prevista no artigo 33, §4º da Lei antidrogas (tráfico privilegiado), fixando-a em três anos e um mês de reclusão, substituída por duas penas restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária).

O TRF-4 entendeu que viola o princípio da proporcionalidade a aplicação de pena elevada e idêntica para conduta completamente diversa das listadas no caput do artigo 273 (falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais).

Inconformado com o decisum, o MPF alegou no STF que não cabe ao Judiciário combinar previsões legais e criar uma terceira norma, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da separação dos poderes e da reserva legal.

O réu, por sua vez, sustentou que a declaração de inconstitucionalidade do preceito secundário do dispositivo do Código Penal produziu o efeito repristinatório da redação original do dispositivo, ou seja, entraria novamente em vigor a regra que fixava para a conduta do artigo 273 a pena em abstrato de um a três anos de reclusão.

E essa discussão rendeu, uma vez que o relator, Ministro Roberto Barroso, sustentou que as condutas que deveriam se amoldar ao delito de crime de contrabando.

O Ministro ALEXANDRE DE MORAES, por sua vez, ressaltou a importância do artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que tem a seguinte redação: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. E declarou que a aplicação de analogia em benefício do réu após a prática dos fatos traz insegurança jurídica. A seu ver, não é possível a imposição de pena prevista para um delito a conduta tipificada em outro dispositivo.

Lançou MORAES que a melhor saída seria mesmo a aplicação do efeito repristinatório ao caso, que é, sem maiores delongas, o retorno da vigência da lei revogada por entendimento em controle de constitucionalidade

Após os argumentos de Moraes, Barroso ajustou o seu voto, e, seguindo o voto ajustado de Barroso pela inconstitucionalidade da pena para importação de medicamentos sem registro, votaram os ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

 

IV – E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS

O que nos causou maior estranheza com a decisão é que o delito de importar medicamentos sem o registo do órgão de vigilância sanitária, nos termos do art. 1º, VII-B, da lei 8.072/1990, é tipificado como crime hediondo.

Ao emprestar efeito repristinatório à pena originária cominada ao delito, anterior à lei 9.677/1998, reclusão de 1 a 3 anos e multa, pelo menos em tese abre espaço à suspensão condicional do processo (lei 99099/1995, art. 89) e ao acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A) a delito rotulado pela hediondez.

Essa situação é por demais estranha e curiosa, levando doutrinadores, após o julgado do STF, a exemplo de Cleber Masson, levantar a necessidade de uma lei para excluir do rol taxativo de crimes hediondos tal delito.

V – CONCLUSÃO

É mais claro que a pena estatuída para o § 1º-B, I do art. 273 do código penal é elevadíssima e fere de morte os princípios da proporcionalidade das penas e vedação de penas cruéis.

Portanto, após todo o esboço, aqui lançado, vemos que ventos bons chegam aos tribunais, e, ao que parece, os princípios que perfumam o papel amarelo da nossa constituição passa a perfumar, de igual modo, a nossa nação e o seu “papel” frente a sociedade as relações do seu povo.

STF: RE979962